tragedia no brasil

 

De repente, a água entrou na minha casa. Os móveis caíram sobre mim. Fui socado contra a parede e ela arrebentou. Estava tudo escuro, só ouvia o borbulhar. Pensei ‘meu Deus, salva minha família’.”

O relato do pedreiro Cartolino Ferreira, de 46 anos, tenta traduzir o que ele classifica como “o pior dia de minha vida”. A história ganha contornos mais dramáticos depois que ele fala do filho caçula, de 11 anos. “Ele foi arrastado pela correnteza por mais de quatro quilômetros e saiu andando, acredita?”

 

O menino Marcos está internado no Hospital das Clínicas de Teresópolis. Seu corpo está bastante machucado, porém, não há fraturas.

Por conta das escoriações, ele não consegue abrir os olhos, mas, apesar de tudo, tenta manter o bom humor. “Quando eu consegui visitá-lo, ele perguntou ‘pai, o senhor parou onde?’, quando respondi, ele disse ‘ih, fui mais longe”. 

Totonho, como Cartolino é conhecido, prefere essa lembrança do encontro que teve com o filho. “A mãe dele morreu, mas eu ainda não contei. Ele perguntou o tempo todo pela mãe. Achei melhor responder que ela está internada. Tenho medo dele ter mais problema de saúde, ele está tão ruinzinho”, explicou. “Vou esperar ele sair do hospital para dar a notícia”, disse.

 

 

Foto: Hélio Motta

Eles foram arrastados rio abaixo, durante a madrugada, por volta das 2h

 

“A morte não deixa ninguém de roupa”

Totonho, embora bastante machucado, não traduz fisicamente a tragédia que enfrentou. Nenhum osso foi fraturado, apesar de ter sido carregado pela enchente juntamente com carros, pedras, móveis e até casas inteiras. “Somos vitoriosos, sei disso”, diz.

Mas os momentos sob a enxurrada provocaram traumas. “Só parei de ser arrastado porque meu corpo ficou preso entre duas casas. Estava completamente nu, preso num monte de lixo, que nem múmia. Havia três corpos ao meu redor. Todos nus. A morte não deixa ninguém de roupa”, afirmou, com a voz embargada.

Para se livrar do lixo que prendia seus braços e pernas, Totonho usou os dentes. “Com isso, fiquei com um braço livre e o que ia arrancando jogava no meu pé, para poder chutar.”

 

 

Foto: Hélio Motta Ampliar

Cartolino tem escoriações por todo o corpo e reclama de dor pela quantidade de terra que ingeriu, mas não sofreu fraturas

 

O braço esquerdo, que ficou imprensado, parece de outra pessoa, se comparado com o direito. Está bastante inchado e os ferimentos dão sinais de inflamação. “Estou com refluxo, sai muita terra. Meu estômago queima demais”, reclama.

O pedreiro contou que foi salvo, quando amanheceu, por moradores que ajudavam no resgate. “Ouvi um cachorro latir e vozes. Gritei por socorro. Um senhor me ajudou, estava com muito frio.”

Filho mais velho escapou

Da família de Totonho, somente o filho mais velho, Paulo Henrique, 24, escapou sem traumas. “Eu corri para o banheiro e consegui fugir pela cozinha. Pulei o muro e fui pedir ajuda a vizinhos que moram em uma parte mais alta. Quem escapou correu para essa casa”, relembra.

Um dia depois da tragédia, Henrique voltou ao imóvel para avaliar o estrago. “Só tem alma aqui em Campo Grande. Não restou mais nada”, lamentou.

Ele está abrigado na casa da mãe, a doméstica Aldineia Motta de Carvalho, 43, que recebeu Totonho e outros quatro primos moradores do bairro Caleme, que também foi devastado. “A família dele está toda desabrigada, tenho de ajudar. A mãe e as cinco irmãs foram para o abrigo montado no Ginásio Pedro Jahara, o Pedrão, por não terem para onde ir. Suas casas foram destruídas”, diz Aldineia.

O drama da família, até a publicação desta reportagem, não havia cessado. O corpo de Ana Cláudia Lopes de Souza, 38, mulher de Totonho e mãe de Marcos, só foi encontrado no início da noite de quinta-feira (14) e, um dia depois, nesta sexta, não havia sido sepultado.

“Essa dor não é só minha. E as vítimas que nunca serão encontradas? Cada um ali é um pai, uma mãe, um filho, um irmão... Vai fazer falta para alguém”, despediu-se Totonho. Apesar dos machucados, ele seguiu para o IML para tentar velar a mulher.

 

Henrique mostra o que sobrou da casa onde a família morava
Foto: Hélio Motta

Henrique mostra o que sobrou da casa onde a família morava